Foto (e legenda): © Luís Graça (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca > Comando e CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > c. setembro / outubro de 1969 > A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos.
Na primeira fila, da esquerda para a direita, um militar que ainda está por identificar, seguido de três alf mil, José António G. Rodrigues, da CCAÇ 12 (já falecido), o António Carlão, também da CCAÇ 12 (já falecido) e o Ismael Augusto (CCS). O Fernando Calado, alf mil trms, também fazia parte desta equipa mas fracturou um braço, não aparecendo por isso na foto de grupo (que é do álbum do cor inf Cunha Ribeiro).
Dormir nu à noite era normal, podendo todavia originar algumas situações pícaras como a que aqui é descrita (**)... No quartel de Bambadinca, que até tinha razoáveis instalações para oficiais sargentos, os oficiais milicianos dormiam em quartos com três camas. Quartos individuais eram um privilégio de capitães e oficiais superiores.
(...) "Encontrámo-nos no BC 5, em Campolide, antes da mobilização de ambos para a Guiné, ele no BCAÇ 2852 e eu no BCAÇ 2851.
Como a maioria dos militares mobilizados para as guerras de África, o Fernando "escrevia o aerograma à (sua) namorada" (...)," quase diariamente, ao princípio da noite". Este foi um dos aerogramas que, em vida, quis partilhar connosco (*).
Meu amor:
Esta manhã, acordei sobressaltado, e reparei que estavam no quarto 2 bajudas (mulheres jovens da Guiné) que nos traziam a roupa lavada e que riam à gargalhada.
Estava nu, de barriga e outras coisas para cima e transpirado como sempre.
Olhei para o camarada do lado que estava tão aflito como eu, e, à boa maneira europeia, tentei cobrir-me com um lençol que não tinha.
Perguntei então às bajudas porque se riam, tendo elas respondido o seguinte:
Para além do embaraço, pensei depois que afinal eu, um homem dito civilizado, tive uma postura naturalmente preconceituosa enquanto que elas, mulheres ditas primárias, tiveram uma postura naturalmente genuína, tendo expressado com rigor o que se tinha passado e rido com gosto a propósito de uma situação bastante caricata.
Passei a manhã a tratar da organização das transmissões de vários grupos operacionais escalados para operações e mais uma vez os comandantes de pelotão disseram-me que os rádios são uma merda e que, por vezes, não funcionam em situações de emergência.
Eu bem sei que me disseram sempre que os rádios são os mesmos da II Guerra Mundial mas, mesmo assim, custa-me anos de vida quando não se consegue fazer o contacto para evacuação de feridos.
Sinto assim, apesar dos meus 24 anos, que tenho uma responsabilidade excessiva e não me resta outra alternativa senão tentar ser o mais eficiente possível.
Antes do almoço, depois do segundo banho do dia, dirigi-me ao bar onde saboreei descontraidamente o meu whisky com água Perrier.
Gosto particularmente deste momento do dia. Diz-se aqui, que na Guiné existem apenas 2 coisas boas: o whisky com água Perrier e o avião para a Metrópole.
Chegou depois o meu colega de quarto [alf mil Ismael Augusto ] e a propósito de qualquer coisa que já não me recordo, ocorreu uma discussão de tal ordem que quase andámos ao murro.
Foi uma vergonha e fomos até ameaçados de ser castigados. São horas, dias, semanas, meses, anos a aturar-nos, sempre em tensão e dentro deste espaço ladeado por arame farpado.
Na verdade, penso que as discussões, a batota, os copos, o calor, os ataques, as emboscadas, etc. criaram uma cumplicidade tal, que tudo indica que seremos amigos do peito para toda a vida
Como se isso não bastasse, durante o almoço o médico [alf mil Joaquim Vidal Saraiva ] veio comunicar-me que mais de metade dos soldados da companhia estavam infectados com blenorragia (designação apropriada do termo de calão muito conhecido que dá pelo nome de esquentamento e que se reporta a uma infecção nos órgãos genitais).
Segundo ele, a penicilina não está a actuar em virtude do calor excessivo e da elevada taxa de humidade e, portanto, é necessário organizar uma reunião de esclarecimento com todos os soldados disponíveis.
Soube depois que o pedido a mim dirigido resultava, afinal, do facto do meu pelotão ter a maior taxa de elementos infectados. [O pelotão de transmissões da CCS tinha 1 alferes, 3 sargentos, 9 cabos e 8 soldados].
Durante a tarde algumas pessoas conseguem dormir a folga, coisa que nunca consegui e ainda menos com este calor e esta humidade.
Eu, como todos os dias que não saio do aquartelamento, cumpri algumas tarefas burocráticas que a tropa, mesmo em guerra, não dispensa.
Mais tarde vagueei, uma vez mais, dum lado para o outro sempre com a sensação de estar encurralado, na ânsia de conseguir gastar o tempo que me falta para me livrar disto.
Por vezes ocorrem, no final do dia, momentos de alguma descontracção. Conversamos sobre a nossa vida na Metrópole e damos umas voltinhas de jipe.
Não tenho carta de condução, mas conduzo. Recebi umas lições do meu colega de quarto e desenrasco-me. De qualquer modo ninguém, nesta situação, está interessado em saber se tenho ou não carta de condução.
Já anoiteceu e partir de agora e até pegar no sono, o que acontecerá lá para as tantas da manhã, instala-se o medo e a saudade.
Eu, que sempre gostei da noite, juro-te que aqui odeio a noite. Estamos todos fartos de fumar, de beber e de jogar, mas a verdade é que estas actividades aliviam, de facto, o medo e a saudade.
Hoje é feriado [1º de Dezembro, dia da Restauração da Independência de Portugal, ] e a probabilidade de haver problemas aumenta. A malta está mais concentrada, fala mais baixinho. [No dia 28 de Maio de 1969, Bambadinca tinha sido atacada em força.]
A questão do medo é surpreendente. Há camaradas que parecem não ter medo nenhum. É como se estivessem em casa ou numa esplanada e, mesmo debaixo de fogo, funcionam normalmente.
Depois, talvez a maioria, tem imenso medo, mas mercê de um enorme esforço consegue controlar a situação (julgo que me enquadro neste grupo).
Finalmente há camaradas, alguns deles aparentemente corajosos, que em quase todas as situações, entram em pânico total e que precisam sempre de ajuda. São obviamente os que sofrem mais, quer durante a situação, quer sobretudo pela vergonha que sentem depois.
Tenho saudades de tudo na metrópole: das pessoas, das ruas, dos jornais, da rádio, dos carros e até dos comboios que aqui não existem.
Quanto a ti, meu amor… Acredita, nunca imaginei que a saudade que sinto de ti me provocasse tamanha dor física. Dói-me a cabeça, dói-me as pernas, dói-me o peito… enfim dói-me tudo.
Sei que estou desesperado, mas não resisto a dizer-te que dava anos da minha vida, se é que os vou ter, para estar neste momento contigo.
São 8 horas da noite e a temperatura nesta altura é um pouco mais amena. Se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom.
Do teu para sempre
Fernando
(*) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20191: (De) Caras (112): O aerograma de 1 de dezembro de 1969: "Meu amor, se calhar esta noite vou ter de pôr um lençol na cama, não vou transpirar a dormir, e… talvez tenha um sonho manga di bom"... (Fernando Calado, ex-alf mil trms, CCS/ BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70)